quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

MIL VEZES HOMEM-VEGETAL


Para as gerações mais novas, o nome Syd Barrett pode não dizer muita coisa. Porém, de 1965 a 1968, Syd esteve à frente daquela que viria a ser uma das maiores e mais controversas formações musicais de todos os tempos – o Pink Floyd. Na época, o conjunto atendia por uma sonoridade mais psicodélica, fortemente influenciada pelas viagens lisérgicas de seu líder e principal compositor. Temas como Arnold Layne e Interstellar Overdrive são alguns clássicos dessa fase – considerada por muitos o melhor momento da banda.
 

Mas foi outra composição que inspirou a gravadora italiana Oggetti Volanti Non Identificati (OVNI) a promover um inusitado tributo. Escrita por Syd pouco antes de deixar o grupo, Vegetable Man nunca foi lançada oficialmente. A letra fala de como o músico se sentia em relação ao mundo e às pessoas ao seu redor – uma clara mostra do estado mental cada vez mais debilitado em que se encontrava em decorrência da esquizofrenia aliada ao uso abusivo de LSD.


Lançado em 2002, The Vegetable Man Project vai além de uma simples homenagem ao fundador do Pink Floyd e sua canção. A ideia é lançar, até 2030, uma compilação de 50 volumes, cada um trazendo 20 versões para Vegetable Man, totalizando 1000 releituras da composição. Até o momento, a série chegou apenas ao sexto volume, datado de 2009 e lançado pela Yellow Shoes Records.

Participam do tributo artistas independentes de várias partes do mundo, inclusive do Brasil: Posthuman Tantra e o sitarista Alberto Marsicano, falecido em 2013, integram o quarto CD, de 2005. Em uma de suas últimas entrevistas, concedida a este blog (leia aqui), Marsicano comenta sobre a reação de Syd à sua interpretação. “O pessoal da gravadora entregou o CD a ele [Syd] pessoalmente, em Cambridge (Inglaterra). Syd ficou curioso em ouvir sua música no sitar e na hora colocou o disco pra tocar. Segundo os produtores, ele rira e disse ter gostado muito da minha versão”.
 

Syd Barrett morreu em julho de 2006, aos 60 anos, vítima de diabetes.

Capa do vol. 5, produzida pelo brasileiro Edgar Franco
 
Algumas faixas do projeto estão disponíveis no Myspace:
www.myspace.com/thevegetablemanproject/music/songs

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

A ÚLTIMA EXPERIÊNCIA


O sitar é um instrumento de cordas, da família do alaúde, inventado na Índia no século XIII e um dos principais símbolos culturais daquele país. Sua difusão no Ocidente se deu na década de 1960 pelas mãos de Pandit Ravi Shankar (1920-2012); mas foi graças a George Harrison, amigo e discípulo do mestre indiano, que o instrumento caiu no gosto popular (podendo ser ouvido em canções como Norwegian Wood e Within You, Without You, dos Beatles). Ravi Shankar representa para o sitar o que Jimi Hendrix representa para a guitarra elétrica ou Luiz Gonzaga para a sanfona. Aliás, esses três nomes estão diretamente ligados à obra do paulista Alberto Marsicano, principal difusor do sitar no Brasil. Fã de Beatles e Rolling Stones – que também utilizou o instrumento na música Painted It, Black –, Marsicano teve aulas com Ravi Shankar em Londres, nos anos 70. De volta ao Brasil, decidiu se aventurar para além das fronteiras da música tradicional indiana, recriando no sitar clássicos do rock (Pink Floyd, Black Sabbath, Iron Butterfly, entre outros) e da música brasileira (como Asa Branca, do rei do baião). Participou de compilações e também colaborou com outros músicos – uma de suas últimas parcerias foi com a banda paraibana Cabruêra, no álbum Nordeste Oculto (2012). Entre seus vários projetos, um dos mais bem-sucedidos foi o Marsicano Sitar Experience, que em 2006 lançou o álbum Sitar Hendrix, com releituras do guitarrista estadunidense, trabalho que chegou a ser pré-indicado ao Grammy na categoria World Music. Além de músico, Marsicano era filósofo, tradutor e poeta. Morreu em 18 de agosto de 2013, aos 61 anos. A seguir, possivelmente sua derradeira entrevista, publicada em dezembro do ano anterior.

Qual foi sua primeira paixão, o rock ou a música indiana? Como esses estilos se cruzaram na sua vida?
Tenho um tio nascido em Goa (Índia) e já ouvia música indiana desde pequeno. Iniciei-me no violão clássico e guitarra flamenca, e com 14 anos já estava com uma Gibson SG. Minhas primeiras influências no sitar foram George Harrison (Beatles) e Brian Jones (Rolling Stones), que hoje sinto abençoarem meu “sitar rock”.

Como foi o aprendizado com Ravi Shankar?
Cheguei a Londres nos anos 70. Shankar estava abrindo aulas de sitar para grupos de alunos iniciantes, pois não havia ninguém adiantado no Ocidente. Ele me incumbiu de levar a tradição do sitar para o Brasil. Incentivado e iniciado por esse grande mestre, assumi a missão e rumei para Varanasi, na Índia, onde estudei na BHU (Benares Hindu University) que mantém o RIMPA (instituto de artes fundado por Ravi Shankar). Lá aprofundei meus estudos com Shankar e Krishna Chakravarty.

O que o levou a gravar um álbum só com músicas de Jimi Hendrix?
Hendrix tocava sitar e pretendia difundir o instrumento no rock. Gravou Cherokee Mist com sitar, faixa que integraria o disco Axis: Bold as Love, mas que acabou retirada do disco pela gravadora por ser muito experimental. A morte do guitarrista interrompeu esse sonho, que foi retomado por mim. Gravei então o disco Sitar Hendrix, que inclusive foi pré-indicado ao Grammy.



Você também gravou um CD de versões dos Beatles (Raga Beatles). Esse registro chegou a ser lançado oficialmente?
O Raga Beatles conta basicamente com sitar e tabla. Nele, toco peças dos Beatles em que o sitar não foi usado em arranjos inéditos. Estou à procura de uma boa gravadora. O trabalho foi gravado em surround 5.1.

Quando se fala na divulgação da música indiana no Brasil, muitos pensam em Alberto Marsicano e na cantora Meeta Ravindra. Que outros músicos você destacaria em nosso país?
Destacaria os tablistas Edgar Bruno e Caito Marcondes.

Alguns de seus shows foram baseados no repertório de Tom Jobim, João Gilberto e outros nomes da Bossa Nova. Você também lançou um MCD com transcrições para sitar de Villa-Lobos (Raga do Cerrado). Que outras releituras você já fez de compositores brasileiros?
Em 1992 iniciei o projeto Sitar Bossa, ainda não gravado em disco, num show do Sesc Instrumental. O trabalho foi copiado por tentativas diluidoras e mal resolvidas [de fundir a Bossa Nova com a música indiana], como o infeliz Bossa Delhi. Isso já havia ocorrido comigo na década de 80, quando apresentei no MASP uma versão para sitar de Asa Branca. O [Zé Eduardo] Nazário, percussionista de Egberto Gismonti, mostrou a esse uma fita cassete com o registro, e Gismonti simplesmente a gravou no sitar sem “sitar-me”. Mesmo assim, dou continuidade ao meu trabalho.

Já recebeu algum feedback ou leu comentários de músicos cujas composições foram reconstruídas por você?
O feedback mais marcante veio de Syd Barrett, ao ouvir minha versão de Vegetable Man [música do Pink Floyd composta por Syd que inspirou o tributo The Vegetable Man Project, do qual Marsicano participou, lançado pelo selo italiano Oggetti Volanti Non Identificati, saiba mais aqui]. O pessoal da gravadora entregou o CD a ele pessoalmente em Cambridge (Inglaterra). Syd ficou curioso em ouvir sua música no sitar e na hora colocou o disco pra tocar. Segundo os produtores, ele rira e disse ter gostado muito da minha versão.

Você também é escritor, com várias obras editadas, tendo inclusive organizado um livro sobre Jim Morrison (Jim Morrison por Ele Mesmo, editora Martin Claret). O que lhe atrai na vida e obra do vocalista do The Doors?
Sempre gostei do Morrison, tanto sua música como sua vida. Foi um líder revolucionário e morreu numa banheira em Paris, como Marat [Jean-Paul Marat, cientista, médico e jornalista ligado à Revolução Francesa]. O livro “estourou”, pois foi lançado simultaneamente ao filme The Doors e vendeu em torno de 800 mil exemplares.

Quais são seus atuais projetos?
Agora estou traduzindo a poesia clássica chinesa para a editora Demônio Negro.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

A MALDIÇÃO DE JOÃO GILBERTO

Sehnsucht é a palavra alemã para anseio. Ela se aplica tanto ao passado, contexto em que se pode traduzi-lá por saudade, como ao presente ou ao futuro, caso em que designa um desejo ardente pelo que é, no fundo, inatingível”, diz a sinopse de Ho-ba-la-lá (à procura de João Gilberto), do jornalista alemão Marc Fischer, lançado pela Companhia das Letras

A missão do autor não era nada fácil, para não dizer impossível. Acompanhado apenas de um violão centenário, deixa para trás Berlim e uma paixão, para encontrar, no calor do Rio de Janeiro, sua outra paixão: a Bossa Nova. E mais do que isso, encontrar também João Gilberto, a quem pediria uma única coisa: que tocasse Hô-bá-lá-lá, a canção que mudou sua vida e o fizera viajar até ali. Esse é o ponto de partida de um instigante e divertido relato, escrito na melhor tradição das tramas de detetive, em que Fischer e sua assistente brasileira Rachel seguem inúmeras pistas em busca do mais inacessível artista brasileiro.

Para chegar ao atual paradeiro do ídolo, Marc Fischer precisa voltar no tempo e montar um quebra-cabeça a partir de depoimentos de pessoas que convivem ou conviveram com o músico: expoentes da Bossa Nova, como Miúcha, João Donato, Marcos Valle, Joyce e Roberto Menescal; a jornalista Claudia Faissol, com quem João teve uma filha; e o cozinheiro Garrincha, que por cinco anos preparou um dos pratos preferidos do baiano radicado no Rio. A investigação também leva o “detetive” a Diamantina, em Minas Gerais, onde, há mais de meio século, João Gilberto se refugiou e desenvolveu seu estilo, literalmente, na privada.

De certa forma, Ho-ba-la-lá remete a outra obra, também alemã, Cabeça de Turco, clássico do jornalismo literário de Günter Wallraff, talvez pelo afinco dos autores em ir até as últimas consequências para aplacar seus anseios: Wallraff, de denunciar o tratamento desumano dado aos imigrantes em seu país; Fischer, de encontrar o coração da beleza.

Por fim, uma fatalidade marcou a publicação de Ho-ba-la-lá na Alemanha. A poucos dias do lançamento, em abril de 2011, Marc Fischer cometeu suicídio. Roberto Menescal havia alertado: “Ele [João Gilberto] muda as pessoas com quem tem contato. É capaz de você se tornar um amaldiçoado para todo o sempre”. Seria Fischer mais uma vítima da “maldição” do pai da Bossa Nova?